Entre suas várias qualidades, chamou a atenção de seus contemporâneos seu
admirável dom como pregador. Muitas descrições de época referem o fascínio que
sua fala exercia sobre as multidões de pessoas simples e também sobre clérigos
doutos, e embora o efeito de sua oração a viva voz não possa mais ser
recuperado, seu estilo e os conteúdos que abordava podem ser conhecidos em parte
através dos 77 sermões que sobreviveram e constam em sua obra publicada em
edição crítica,
Sermões Dominicais e Festivos, e que são considerados
autênticos, conforme disse José Geraldo Freire. São textos eloquentes,
persuasivos, cheios de zelo
messiânico, sendo frequentes a defesa do pobre
e a reprimenda do rico, e o combate às
heresias de seu tempo, como as dos
albigenses e
valdenses, com uma eficácia tanta que lhe foi dado o
apelido de
malleus hereticorum (o martelo dos heréticos).
[2][11]
Embora a tradição atribua seu dom à inspiração divina, não é possível deixar
de considerar o importante papel que sua formação erudita desempenhou neste
aspecto de sua vida e obra. A análise das referências que fez em seus escritos,
junto com o levantamento das fontes literárias presentes em seu tempo nas
bibliotecas que frequentou, especialmente a de Santa Cruz, atestam sem sombra
para dúvidas que sua preparação intelectual foi ampla e profunda.
[13] Além de um
conhecimento detalhado da
Bíblia,
dos escritos dos Padres da Igreja e outros escritores cristãos, são encontradas
citações de clássicos como
Aristóteles,
Cícero,
Catão,
Sócrates,
Dioscórides,
Donato,
Eliano,
Escribônio,
Euquério
de Lião,
Festo
Solino,
Filão de Alexandria,
Tibulo,
Sérvio,
Públio Siro,
Juvenal,
Plínio, o Velho,
Varrão,
Sêneca,
Flávio Josefo,
Horácio,
Ovídio,
Lucano e
Terêncio. Seu conhecimento das ciências naturais
ultrapassa em muito o currículo regular das
artes liberais medievais, aprofundando-se em
áreas como a
medicina, a
física, a
história natural, a
cosmografia,
mineralogia,
zoologia,
botânica,
astronomia e
óptica.
[14][3] Nas palavras de
José Antunes,
"Santo Antônio de Lisboa, embora muito festejado e venerado como santo pelo
povo, é menos conhecido como um homem de cultura literária invulgar e como um
verdadeiro intelectual da Idade Média. Reveladora dessa cultura ímpar, é a sua
obra escrita, cheia de beleza e densidade de pensamento, como nos testemunham os
seus
Sermões, autênticos tesouros da Literatura e da História. Vasta,
profunda, extraordinária, a respeito da Sagrada Escritura. Ampla, variada e bem
apropriada nas transcrições dos Padres da Igreja e dos Autores Clássicos.
Impressionante, para o tempo, não apenas pelo conhecimento que revela das
ciências naturais e das humanidades, mas igualmente pelo erudito discurso sobre
noções jurídicas, como Poder, Direito e Justiça".
[15]
Naturalmente, era fiel à ortodoxia cristã. Apesar de sua extensa cultura
profana, considerava a Escritura sagrada a fonte da ciência superior, da
verdadeira ciência, da qual todas as outras eram meras servas e simples
coadjutoras no trabalho da
Salvação. Por isso deu grande importância à
uma boa
exegese do texto sagrado,
privilegiando a extração do seu sentido
moral. Nota-se ainda em sua obra alguns dos primeiros
sinais de um progressivo abandono do pensamento medieval, que apresentava o
homem e o mundo como desprezíveis e fontes do pecado, abrindo-se a uma
apreciação mais positiva da vida concreta e do relacionamento humano, entendendo
o ser humano como uma maravilhosa obra divina.
[16] Na análise de
Pedro Calafate,
"Santo António não olvidará a excelência da contemplação, mas sublinhará não
obstante a circunstância terrena do homem como corpo e alma, sem deixar de
considerar que a abertura à exterioridade não transforma o amor aos outros e às
criaturas no apego à posse das coisas, estando neste caso o culto da pobreza,
nomeadamente as críticas severas que dirigiu aos prelados e dignatários
eclesiásticos, por se comprazerem nos luxos do século. Tratando-se de uma
espiritualidade que não olvidou a dimensão prática e vivencial, equacionou
também a relação entre a ação e a contemplação no quadro da mística. Filha da
vontade e do amor, numa
alienatio mentis que supera o plano estritamente
racional para que a alma, inteiramente conduzida pela graça, contemple Deus como
em espelho ou em enigma, a mística tampouco representará uma renúncia à vida
ativa, nem às exigências da vertente racional do homem, porque a alma volta e
regressa à vida ativa para a realizar com maior perfeição, numa confluência
entre o entender e o contemplar, o saber e a sabedoria".
[16]
Contudo, é de dizer que na forma como chegaram, os ditos sermões são antes um
manual didático para os noviços do que transcrições de sermões verdadeiramente
proferidos. Foram produzidos para seus alunos, para instruí-los na arte
predicatória, a fim de que depois eles pudessem converter com sucesso os
pecadores e infiéis à fé cristã. Apesar disso, eles possuem em seu conjunto
pouca ordem sistemática.
[17]
Os sermões são ainda um precioso documento de época, muitas vezes fazendo
alusões às transformações sociais e econômicas que ocorriam durante aquele
período, atestando o crescimento das cidades, o florescimento das atividades
artesanais e do comércio, o surgimento das corporações de ofícios, as diferenças
de classes. Além dos conteúdos sacros, que ainda preservam seu caráter
inspirador, tais alusões - onde surge aguda crítica social na condenação da
avareza, da usura, da inveja, do egoísmo, da falta de ética na administração
pública, dos falsos moralistas e hipócritas, dos maus pastores de almas, do
orgulho dos eruditos, dos ricos ensimesmados em sua opulência que oprimem e
excluem os pobres do tecido social - são responsáveis pelo valor perene e atual
de seus escritos, sendo passíveis de imediata identificação com muitas
circunstâncias e contradições da vida contemporânea.
[18]