Luiz Holanda
Alberto Caeiro, pseudônimo de Fernando Pessoa, in “Poemas
Inconjuntos”, afirmou que, se depois da sua morte, alguém quisesse
escrever sua biografia não haveria nada mais simples, pois ela só teria
duas datas: a da nascença e a da partida. Entre uma e outra, os dias
seriam seus. Em sua visão realizou todos os desejos e sonhos, além de
ter compreendidoas coisas em sua totalidade, pois as viu com os olhos, e
não com o pensamento. Considerado um poeta da natureza, deixou a vida
da maneira mais simples, conforme sua própria confissão, de que num belo
dia, ao ter um sonho como qualquer criança, simplesmente fecharia os
olhos e dormiria.
Um outro poeta, que,mesmo sem jamais ter escrito um verso
compreendeu o significado das coisas vendo-astambém com os olhos (se
as visse com o pensamento as veria divididas) foi Aureliano de Jesus
Santana, carinhosamente chamado pelos amigos e familiares de Netinho, o
poeta da vida.À sua maneira, fez muitas poesias.
Para subsistir, tornou-se empresário da construção e da
terraplanagem, o que o obrigou a deixar os estudos. Bem cedo casou-se
com Vanda Simões Ramos, de conceituada famíia do interior baiano, com
quem teve quatro filhos. Seu maior desejo era escrever sobre a vida,
em forma de versos, mas anecessidade de cuidar da família o fez mudar de
caminho, que percorreu com dignidade, ciente de que isso era o que o
destino havia lhe reservado.
No começo, tudo lhe foi difícil e trabalhoso, obrigando-o a deambular
para conseguir negócios. Viajante de longas andanças, jamais deixou de
conservar a simplicidade em todos os atos da vida, mesmo sendo um
caçador de sonhos. Depois de anos de trabalho para manter a família na
trilha do progresso, um fato dramático interrompeu-lhe a caminhada. A
doença o pegou no meio da travessia, dessas que, mesmo tratadas, voltam
para levar-lhe. Religioso e temente a Deus –e diante da fatalidade
inexorável-, esperava por um novo nascimento num mundo bastante
diferente, especialmente do visto sob o sonho humano do Jardim do Éden.
E foi justamente isso queaconteceu, após uma década de luta.
Na humildade de sua vida –plena de grandezas humanas-, jamais quis
criar nada que fosse diferente das coisas existentes na natureza.
Preferia o conforto do aconchego familiar à solidão do inovador. Sabia
de tudo sobre a vida, inclusive que havia construído importantes
coisas, pois tivera quatro filhos vivendo num mundo onde tudo lhes
seria legado, mesmo com a incerteza do amanhã. Mesmo assim, se abstinha
de pensar o que o amanhã poderia lhes trazer, pois se recusava a passar
avida esperando por tempestades. Para ele, apreciar o calor do sol era
sinônimo de esperança.
Netinho era um homem de bem com a vida. Jamais discutia ou brigava
com alguém; era um poeta. Sua luta contra a doença não era segredo. De
há muito havia se retirado da empresa para combatê-la. Passou por
várias cirurgias, melhorou, mas a guerra acabou quando a doença venceu.
Não sentiu nenhuma tristeza, mas apenas o alívio de que o sofrimento
estaria em breve terminado.
Clarice Lispector, filosofando sobre a morte, escreveu que tinha
sonhado um sonho no qual ela e todos nós éramos artistas de uma absurda
peça de teatro, escrita por um Deus absurdo e na qual nós, os
personagens, morreríamos, mas somente como artistas.Se assim é, Netinho
saiu de cena apenas como artista, pois ele continua aqui, não na
nossa vida -face a imposibilidade fática da matéria-, mas no nosso
coração, através dos gestos e atitudes que protagonizou enquanto
viveu, e que se transformaram no legado de sua participação.