domingo, 10 de fevereiro de 2013

O poeta da vida

 
 

Luiz Holanda

 

 

Alberto Caeiro, pseudônimo de Fernando Pessoa, in “Poemas Inconjuntos”, afirmou que, se depois da sua morte, alguém quisesse escrever sua biografia não haveria nada mais simples, pois ela só teria duas datas: a da nascença e a da partida. Entre uma e outra, os dias seriam seus. Em sua visão realizou todos os desejos e sonhos, além de ter compreendidoas coisas em sua totalidade, pois as viu com os olhos, e não com o pensamento. Considerado um poeta da natureza, deixou a vida da maneira mais simples, conforme sua própria confissão, de que num belo dia, ao ter um sonho como qualquer criança, simplesmente fecharia os olhos e dormiria.
Um outro poeta, que,mesmo sem jamais ter escrito um verso compreendeu o significado das coisas vendo-astambém com os olhos (se as visse com o pensamento as veria divididas) foi Aureliano de Jesus Santana, carinhosamente chamado pelos amigos e familiares de Netinho, o poeta da vida.À sua maneira, fez muitas poesias.
Para subsistir, tornou-se empresário da construção e da terraplanagem, o que o obrigou a deixar os estudos. Bem cedo casou-se com Vanda Simões Ramos, de conceituada famíia do interior baiano, com quem teve quatro filhos. Seu maior desejo era escrever sobre a vida, em forma de versos, mas anecessidade de cuidar da família o fez mudar de caminho, que percorreu com dignidade, ciente de que isso era o que o destino havia lhe reservado.
No começo, tudo lhe foi difícil e trabalhoso, obrigando-o a deambular para conseguir negócios. Viajante de longas andanças, jamais deixou de conservar a simplicidade em todos os atos da vida, mesmo sendo um caçador de sonhos. Depois de anos de trabalho para manter a família na trilha do progresso, um fato dramático interrompeu-lhe a caminhada. A doença o pegou no meio da travessia, dessas que, mesmo tratadas, voltam para levar-lhe. Religioso e temente a Deus –e diante da fatalidade inexorável-, esperava por um novo nascimento num mundo bastante diferente, especialmente do visto sob o sonho humano do Jardim do Éden. E foi justamente isso queaconteceu, após uma década de luta.
Na humildade de sua vida –plena de grandezas humanas-, jamais quis criar nada que fosse diferente das coisas existentes na natureza. Preferia o conforto do aconchego familiar à solidão do inovador. Sabia de tudo sobre a vida, inclusive que havia construído importantes coisas, pois tivera quatro filhos vivendo num mundo onde tudo lhes seria legado, mesmo com a incerteza do amanhã. Mesmo assim, se abstinha de pensar o que o amanhã poderia lhes trazer, pois se recusava a passar avida esperando por tempestades. Para ele, apreciar o calor do sol era sinônimo de esperança.
Netinho era um homem de bem com a vida. Jamais discutia ou brigava com alguém; era um poeta. Sua luta contra a doença não era segredo. De há muito havia se retirado da empresa para combatê-la. Passou por várias cirurgias, melhorou, mas a guerra acabou quando a doença venceu. Não sentiu nenhuma tristeza, mas apenas o alívio de que o sofrimento estaria em breve terminado.
Clarice Lispector, filosofando sobre a morte, escreveu que tinha sonhado um sonho no qual ela e todos nós éramos artistas de uma absurda peça de teatro, escrita por um Deus absurdo e na qual nós, os personagens, morreríamos, mas somente como artistas.Se assim é, Netinho saiu de cena apenas como artista, pois ele continua aqui, não na nossa vida -face a imposibilidade fática da matéria-, mas no nosso coração, através dos gestos e atitudes que protagonizou enquanto viveu, e que se transformaram no legado de sua participação.