Sozinho não podemos ficar |
O homem só sempre foi só. Menino só. Adolesceu e madurou só. Não que
não tivesse tido amigos. Até teve. Geraldinhos e Pingos, Xandes e
Inácios, Claudios e Marquinhos, Moreiras e Almeidas. Não plantou
amizade com nenhum deles. Todos um porre: divertidos no início, enjoados
no fim. Foi vomitando um a um.
O homem só tem manias que só ele. Não dorme de luz apagada, se
enxuga com toalha molhada, esquece a televisão ligada, não atende
telefone por nada. Deixa o celular morrer de tocar. Muitas vezes nem
responde a ligação. Pra quê? Para quem? Só se fala ao homem só somente o
indispensável.
‘Ao som de um piano ao longe, inventa um mundo de gente e gente de todo mundo.
É possivel está só na multidão |
O homem só tem dois horrores: gente e cebola. A faca que corta a
laranja não pode cortar cebola. Fica o gosto e o desgosto. Lembra da mãe
desatenta, da avó sem cuidados, do pai caladão.
O homem só trabalha só. Escreve por encomenda, redige por intuição.
Ao som de um piano ao longe, inventa um mundo de gente e gente de todo
mundo. Conversa com Joões, conta casos para Marias, discursa para
multidões, enche a cara com Gustavos, namora Desirées, tem filhos com
Rosanas.
Vive instantes intensos rodeado de vidas geradas por palavras e
expressões. É amigo e ouvidor, conselheiro e fiador, companheiro e
porta-voz, inimigo e desafeto de infinitas criaturas. Assim como as
cria, mata todas numa teclada só. Quando o tempo acaba, o saco enche, o
piano cansa.
Aos primeiros acordes ao longe, ressuscita um a um com o elixir da
imaginação. Quando o abstrato se dissipa e a concretude emerge
esfregando a verdade no seu nariz, o homem só volta a ser só. Tão
absolutamente só que não se dá conta que não é tão somente só no mundo.
O homem só tem uma vizinha. Que também é só. Que não liga por ser só.
Acostumou. Casa vazia, cama vazia, peito vazio. Não por falta de
tentativa. Até quis Maurícios e Joaquins, Pablos e Melquiades, Reinaldos
e Beneditos. Mas as tintas do destino também a pintaram só. E só vive a
fazer a vida longe da rua, longe de gente, longe de tudo. Tal e qual
seu vizinho, o homem só.
A vizinha só não escreve. Toca piano. Pelas mãos que passeiam a
bailar, viaja porta afora. Conversa com Marias, conta casos para Joões,
encanta platéias distintas, toma chás com Enedinas, namora Adamastores,
tem filhos com Rafael, vive instantes intensos inebriada de vidas
geradas por notas musicas. É amiga e ouvidora, conselheira e faladeira,
companheira e porta-voz. Inimiga e desafeto de infinitas criaturas.
Quando a música chega ao fim, de duas uma: ou busca outra no ar, para
encher a vida de tantas vidas, ou fecha o piano. É neste exato silêncio
que a verdade grita. E a vizinha só volta a ser só. Tão absolutamente
só que não se dá conta que não é tão somente só no mundo.
Quando pisca duas vezes a luz na varanda ao lado, iluminando a copa
do oitizeiro da calçada, as folhas sombreadas dizem que está na hora. O
homem só e a vizinha só, sós como são, a sós se dão.
Não se denominam, mas se desejam. Não se exclamam, mas se beijam. Não
se perguntam, mas se tocam. Não se falam, mas se despem. Não se dizem,
mas se apertam. Não se pronunciam, mas se sugam. Não se anunciam, mas se
invadem. E se contraem, e se mexem. E se viram, e se desviram. E se
sobem, e se descem. E se ondulam, e se tremem. Até que ela emite um
aviso gutural crescente e ele responde com uma respiração ofegante,
libidinosa, satisfeita.
Chegam onde querem chegar quase que ao mesmo tempo. Explosões
silenciosas, jorros secretos, acelerações, desacelerações. Altas e
baixas de pressões. Restauram-se os dois, pós-gulosos que são.
Aceitam-se num carinho breve e infinito, saboreiam um torpor como uma
sobremesa dos deuses.
Até que se vão. Cada um pro seu canto, cada um para o seu mundo. Sem
uma palavra, sem um "durma bem, meu bem", sem um sorriso só. Bem, assim
era como acontecia.
Mas como tudo que acontece na vida, desaconteceu. Um dia, a luz ao
lado parou de piscar duas vezes. As sombras das folhas do oitizeiro
emudeceram de vez. Foi o sinal derradeiro. Ninguém mais se apareceu.
Sem o alento do piano ao longe, cansado de tanto não escrever, tomado
por uma inquietude curiosa, o homem só debruçou-se na varanda contígua,
pescoço de girafa à procura aflita de suas razões e emoções de viver.
Antes que despencasse no jardim, caiu num pranto só.
Viu nada, nada, nada. Só uma sala vazia, vazia, vazia. Sem vida, sem
vizinha, sem coisas, nem o piano. Pela primeira vez, o homem só sentiu a
falta de companhia. E sucumbiu de sua verdadeira solidão.