A recente criação da Comissão da Verdade pelo governo brasileiro
foi vista, por minorias de alguns setores mais radicais (de ambos os
lados da escala ideológica), como uma continuação da luta travada na
época dos anos de exceção e repressão: por alguns, como uma instância de
revanche; por outros, como a oportunidade de resgatar ideologias que,
sob um manto aparentemente humanista, já se mostraram daninhas em
outras partes do mundo.
No entanto, a nomeação efetiva da comissão, que se mostrou
bastante equilibrada, veio a mostrar que ela pode, de fato, ser aquilo
que a grande maioria está esperando – uma instância de resgate da
dignidade – e muitas vezes até dos restos mortais - dos que estiveram
envolvidos nos conflitos ainda não completamente esclarecidos daquela
quadra da história recente do Brasil.
Quero destacar, aqui, em especial, a minha admiração pela pessoa
do Professor Doutor Cláudio Fonteles, nomeado pela Presidência da
República para compor esta Comissão. Ele é membro emérito do Ministério
Público Federal, onde foi Procurador-Geral da República, e tem uma
história de luta pelos direitos humanos na melhor linha da Doutrina
Social da Igreja, que ele aliás ensina, com muito brilhantismo, no Curso
Superior de Teologia da Arquidiocese de Brasília.
Cláudio Fonteles está na comissão em razão da sua história como
homem público, e como digno representante dos cristãos que, movidos pela
necessidade de defender a vida e a liberdade em nosso país, expuseram
sua segurança pessoal para discordar pacificamente das políticas
equivocadas de então, bem como para registrar e documentar o que ocorreu
no período: nós, os católicos brasileiros, na excelente companhia dos
irmãos judaicos e dos irmãos protestantes.
Isto foi feito através de iniciativas preciosíssimas como, por
exemplo, o projeto Brasil Nunca Mais, iniciado ainda na clandestinidade,
no tempo da ditadura, quando se podia falar de verdade em "justiça de
transição".
Não estou tratando dos que, naquela época, muitas vezes
empolgados ou pressionados pelos tempos duros, acabaram adotando
caminhos radicais e incompatíveis com a boa doutrina social da Igreja.
Falo dos cristãos que, ontem como hoje, levantaram pacificamente suas
vozes em defesa do direito à vida e à liberdade ameaçados pelo Estado
brasileiro de então, em que a vontade de alguns foi confundida com a
vontade de todos, e a eliminação física de pessoas em razão desta ou
daquela posição ideológica era vista como muito natural.
Curioso que, naquela época como hoje, a Igreja continue como
bastião inabalável da luta em favor da vida dos mais fragilizados –
naquela época, os mortos e desaparecidos na luta política; hoje, os
nascituros, anencéfalos e doentes terminais, ameaçados agora pelo aborto
e pela eutanásia.
Uso a expressão “curioso” não por causa da luta da Igreja pela
vida, que é sempre coerente e firme. Mas porque os argumentos daqueles
que se opõem a esta luta cristã continuam bem parecidos: trata-se,
diziam os de então, de questões de Estado, e, como o Estado é laico,
nós, católicos, deveríamos manter-nos fora de tais discussões. Este
argumento ainda é repetido, hoje, pelos que, ocupando funções estatais,
liberam o aborto e a eutanásia. Mas a luta pela vida é sempre nossa, e o
Estado não calará a Igreja na defesa da vida e da dignidade humana. Que
o Estado é laico sempre o soubemos, e não queremos nem por um momento
que seja diferente. Mas lembraremos sempre a todos – aí incluídos os
eventuais ocupantes do Poder em qualquer quadra histórica - que a vida
humana é sagrada e que sempre a defenderemos frente ao Estado, da
concepção à morte natural.
Cláudio Fonteles continua como um grande lutador pela vida, e
teve que ouvir, muitas vezes, a acusação de que a sua atuação indivisa
como homem público cristão “feria a laicidade do Estado”, quando, no
exercício dos importantes cargos públicos que ocupou, lutava
intransigentemente pelo respeito à vida dos nascituros, embriões e
bebês, contra abortos e frias manipulações destrutivas em laboratório.
Cláudio, no entanto, é um exemplo de cidadão íntegro e coerente: ele
sempre teve os mesmos princípios humanos, quer na missa, quer no seu
gabinete de Procurador Geral da República, onde não buscou aplausos
fáceis, mas a luta corajosa pela defesa do ser humano.
Orgulho-me, ainda, como Procurador da República que também sou,
que felizmente o Dr.Cláudio Fonteles, além de grande cristão, também
seja um colega de instituição, e que de certa forma me represente
duplamente nesta Comissão.
* Paulo Vasconcelos Jacobina é Procurador Regional da República e Mestre em Direito Econômico