e supostamente fora de nossa ação e
alcance. É a cultura do atavismo a serviço da desinformação.
Nos debates acalorados sobre o impeachment de Dilma Rousseff, fica
patente a nossa disposição cívicFoto: ReutersPerdi as contas, nas últimas semanas, de quantos suspiros deixei escapar ao abrir a caixa de e-mail, os grupos de WhatsApp e as timelines
do Twitter ou do Facebook. Reconheço estes suspiros: são a canalização
dos mesmos cansaços, preguiças e desgostos de quando recebo correntes
com fórmulas mágicas para problemas complexos. Contra estupradores, tome
castração química. Contra a criminalidade, pena de morte. Contra a
gravidez precoce, o fim do baile funk. Contra a corrupção, o impeachment, palavra da moda em dias recentes.
De uns meses pra cá, todos parecem preocupados, não sem certa razão,
com o estado das coisas. Todos parecem dispostos a mudar o mundo. E
todos parecem ter as soluções definitivas e infalíveis na ponta da
língua. Nesses momentos, os riscos de se debater a revolução com quem
até ontem não media palavras para dizer que não gosta, não se interessa,
não tolera o noticiário político é assistir, num camarote literal (às
vezes regado a espumante e corte nobre), a um festival de bobagens que
na melhor das hipóteses se encerram na urgência de outras demandas (o
desfecho da novela, por exemplo) e, na pior, ao velho preconceito de
classes.
O tema, oficialmente, é a inabilidade, a imprudência e a inoperância
do governo (federal, pois neste mundo paralelo o poder é absoluto e a
federação, um corpo estranho), mas as cotoveladas e espetadas no olho
são direcionadas aos beneficiários das esmolas, aos sobreviventes de
currais eleitorais, às cabra cegas de tapa-olhos afirmativos.
Dá preguiça, como dá preguiça ouvir soluções mágicas contra a volúpia
do estuprador defendidas por quem não se envergonha em reforçar o
discurso da culpa da vítima, das vulgaridades contemporâneas, das
importâncias de se dar ao respeito para ser respeitada - os pilares que
servem de colchão para um crim
a para enxugar gelo. Essa conversa
ouvimos desde o Fora FHC, aludido pelas mesmas urgências que
agora se rebelam contra o símbolo máximo, talvez único, de todas as
nossas misérias: a presidenta da República. Em tempos de comoção, como
estes o são, os mais assustados gritam por qualquer coisa. A rua é
pública e o choro é livre, mas não deixa de ser curiosa a dificuldade
para se encampar medidas efetivas para atacar o desmando agora
alardeado. Nessas rodas de conversa, é firme a convicção de que estão
acabando com nosso país – sobretudo por quem acaba de chegar de vigem
aos exterior. Mas experiente perguntar os porquês. “Vou pra rua para
combater a roubalheira”. “Quero mostrar minha indignação com tanto
desmando”. “Gritemos contra a destruição da Petrobras”.
Ok, tudo bem, indignados estamos todos, mas o quanto estamos
dispostos a arregaçar as mangas e debater as mudanças a fundo? Quando a
corrupção esteve no cerne das nossas prioridades corporativas? Quando
decidimos aposentar nossas carteiradas? E nossas carteirinhas
falsificadas de estudante? Ou nossas carteiras de motoristas compradas à
vista? Quando deixamos de desviar a água da rua para o nosso quintal?
Não deixa de ser estranho: parte dos manifestantes que agora tira o
velho civismo do armário ontem aplaudia as cacetadas da polícia sobre
manifestantes que denunciavam os abusos das tarifas de ônibus e metrô.
Ou fazia pouco-caso com os professores da rede pública sucateada que
trancavam o trânsito na avenida principal. Alguns, que até ontem falavam
em Bolsa Esmola, agora juram indignação contra os ajustes em pensões e direitos trabalhistas.
O que mudou? Nada.
A grita contra a corrupção não é de hoje e está longe de ser
imerecida. O mote é tão óbvio quanto ser contra a malária, e não faz
arranhão aos que se regozijam, seguros e intocados, do nosso purismo. Na
sequência da linha sucessória estão três caciques do PMDB, espécie de
arroz-de-festa de todos os escândalos noticiados desde a reabertura
democrática, da Castelo de Areia à Operação Lava Jato. Prova disso é que
Collor se foi (e voltou) e a Tropa de Choque ficou - juntamente com os
destaques sobre tesoureiros e tesourarias, ainda muito bem empregados.
O baluarte da mudança, que joga gasolina nas manifestações ao não
dizer claramente que se opõe ao governo e não aos golpes, até hoje deve
explicações sobre o uso de dinheiro público para a construção de
aeroportos particulares no quintal de parentes. Deve explicação também
sobre o direcionamento do agrado financeiro a publicações amigas. Este
mesmo baluarte, que elege sem nomear a irmã como iminência-parda, galgou
postos e expressões públicas por uma meritocracia curiosa: o sobrenome.
Seu partido, que agora flerta com as soluções fáceis, é protagonista
deste e de outros negócios igualmente impudicos, mas não igualmente
debatidos nas casas das melhores famílias. Um seu ex-presidente, por
exemplo, é suspeito de receber uma boa bolada para ajudar a enterrar uma
CPI que agora ressurge como palanque.
A desolação, embora combustível hoje para a velha indignação
seletiva, é multipartidária, mas é bom lembrar: trocar o sofá da sala
onde se consumou a traição não ameniza nosso impulso à infidelidade. Se
alguém deseja de fato mudar o mundo, seus hábitos e vícios
impublicáveis, é preciso um esforço mínimo para entender seu subtexto - e
apreender a parte que nos cabe nele. Não adianta falar em limpeza ética
e mandar o guarda caçar bandidos quando somos flagrados alcoolizados ao
volante. Nem adianta falar em radicalismos se não vislumbramos a
estrutura dos descalabros, que começa no financiamento de campanha e se
encrespa no patrocínio às novas velhas legendas de aluguel.
Apesar da aparente disposição em colocar tudo abaixo, nem sempre as
respostas a estas perguntas são satisfatórias. Quanto mais nos afastamos
da vida pública, mais nos tornamos a caricatura do cidadão vacilante,
que terceiriza a função de eleger o que é bom para ele e vai dormir
tranquilo o sono dos justos. Este é o caminho fácil. O outro, mais
árduo, é se mobilizar, criar cartas de compromissos e buscar apoio e
musculatura para encampar as mudanças consideradas urgentes. Algo
parecido aconteceu na Grécia – mas este é o caminho mais difícil.
Mudanças de fato exigem caminhos novos, e este é o desafio que o velho
Fla x Flu, preso nas próprias sobreposições, parece incapaz de
vislumbrar, entender e superar.
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