sábado, 21 de junho de 2014

Militares gays fora do armário

Capa, revista Época de 2008, com os sargentos Laci e Fernando
Assumiu a presidência do STM, Superior Tribunal Militar, pela primeira vez nos 206 anos de história dessa corte, uma mulher, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, de 54 anos. Como uma de suas prioridades, Maria Elizabeth disse que atuará em favor do fim da discriminação aos homossexuais nas Forças Armadas.
 
 
É uma grande novidade na mais alta corte militar. O último presidente do STM, general-de-Exército Raymundo Nonato de Cerqueira Filho, que se aposentou e a quem a constitucionalista Maria Elizabeth agora substitui, notabilizou-se por defender posições radicalmente opostas.

Quando foi indicado para assumir uma cadeira de ministro do STM, em 2010, Cerqueira Filho declarou que a carreira castrense não é adequada para homossexuais. “Talvez tenha outro ramo de atividade que ele [o homossexual] possa desempenhar”, afirmou.

“Tem sido provado mais de uma vez, o indivíduo não consegue comandar. O comando, principalmente em combate, tem uma série de atributos, e um deles é esse aí. O soldado, a tropa, fatalmente não vai obedecer. Está sendo provado, na Guerra do Vietnã, tem vários casos exemplificados, que a tropa não obedece normalmente indivíduos desse tipo", disse o general.

Desse tipo?

Já a atual presidente declarou:
“Todos nós, cidadãos brasileiros heterossexuais ou homossexuais, temos um compromisso com a Pátria e ninguém pode ser segregado como se fosse cidadão de primeira ou segunda categoria. O Estado não pode promover o discurso do ódio.”

Pareceria que se trata apenas de uma divergência de opinião. Mas não é. O artigo 235 do Código Penal Militar, incluso no capítulo dos Crimes Sexuais, tipifica a “pederastia” como crime sexual, mesma categoria em que entram o estupro, atentado violento ao pudor ou corrupção de menores, alvo de outros artigos constantes no capítulo.

“Não é possível falar em fim da discriminação enquanto vigorar o malfadado artigo 235. Por que a doutora Maria Elizabeth, por quem tenho o maior respeito, não fala abertamente que ele tem de ser suprimido?”, pergunta o sargento licenciado do Exército, Fernando Alcântara de Figueiredo.

Ele sabe o que diz. Há seis anos, homens da Polícia do Exército armados com fuzis FAL e pistolas, cercaram o prédio da Rede TV!. Seu objetivo era prender o 2º sargento Laci Marinho de Araújo, homossexual assumido, que encerrava uma entrevista ao programa "SuperPop", da apresentadora Luciana Gimenez. De Araújo, como é conhecido no Exército, estava em companhia de Figueiredo. Ambos falavam sobre o relacionamento amoroso que mantêm desde 1997.

Primeiro casal de militares brasileiros a desvestir a máscara da hipocrisia e a assumir a homossexualidade, os dois sofreram desde então toda sorte de perseguição. Além da prisão, feita diante das câmeras de Luciana Gimenez, a pretexto de punir De Araújo por deserção, os dois foram processados e condenados, inclusive no STM, em 2012, por “denegrir” a imagem do Exército, instituição à qual acusaram de tortura e maus tratos durante a prisão no Superpop.

A verdade é que nunca se viu uma operação de prisão de suposto desertor tão espetacular. Emissora cercada, homens fortemente armados, um aparato bélico desproporcional contra dois homens que só declaravam se amar. Se o objetivo fosse apenas o de conduzir preso um desertor, a prisão poderia ter sido feita de forma muito mais discreta. Mas o espalhafato, digno de operação contra mega-traficantes, evidencia que a real intenção era punir os dois que acabavam de sair do armário.

“Eu não sei se tem como mudar a cultura e reformar por dentro uma instituição como o STM”, diz Figueiredo. “Por mais bem intencionada que seja a doutora Maria Elizabeth, ela é apenas uma em uma corte composta por 15 ministros, dos quais três vêm do mais alto comando da Marinha, quatro do Exército, três da Aeronáutica. Apenas cinco ministros são civis, como ela”, diz Figueiredo, que continua casado com Laci.

Desde 2009, pelo novo sistema de Justiça Militar argentina, a homossexualidade não é mais considerada delituosa nos quartéis. Ao contrário, o novo ordenamento estabelece que o militar que cometer um ato de discriminação contra gays será punido.

Em 2011, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, assinou medida que pôs fim à discriminação de gays assumidos no Exército. Assim, militares homossexuais ganharam o direito de revelar sua orientação sexual sem o risco de serem exonerados.

A doutora Maria Elizabeth tem um mandato de apenas nove meses na Presidência do STM para pelo menos tentar fazer o restart das Forças Armadas nesse quesito, e mostrar que é para valer sua defesa pela igualdade de tratamento aos gays. Um bom começo seria posicionar-se claramente contra a criminalização da “pederastia” no Código Penal Militar.