Gerivaldo Neiva *
Toda mãe católica tem o sonho de ver os filhos passando pela preparação
da primeira eucaristia (antigamente se dizia “primeira comunhão”) e
comungando todo compenetrado, feito gente grande. Toda mãe católica
comenta com imenso prazer que o filho já sabe “responder” uma missa
inteirinha. E em voz alta. (O problema é que alguns meninos ficavam
enrolando, falando baixinho e sempre esperando que o vizinho começasse a
resposta.) Pois é, depois de algum tempo fica tudo meio automático e a
gente repete até sem pensar no que está respondendo. Também, depois que
aprende não esquece mais. Eu mesmo posso levar anos sem participar de
uma missa que ainda me lembro de todas as respostas. A consequência
disso é que algumas pessoas continuam repetindo frases sem compreender o
significado e outros ficam esperando alguém começar a falar para
continuar com a resposta.
Uma das respostas que me deixava mais
intrigado era quando o padre dizia “O Senhor esteja convosco” e todos
respondíamos: “Ele está no meio de nós”. Claro que eu sabia que “Ele”
não estava presente em carne e osso, mas não conseguia deixar de dar uma
olhadinha para o lado em busca “Dele”.
Um dia desses usei esta
expressão meio sem querer e fora do contexto da missa católica. Era um
desses tantos eventos para discutir a violência, marginalidade,
segurança, da necessidade de mais policiais na cidade, mais viaturas,
mais armas, mais rigor na aplicação da pena de prisão e assuntos afins.
Estava cansado de ouvir as pessoas defendendo ideias absurdas do tipo
“bandido bom é bandido morto”, “devia existir a pena de morte e prisão
perpétua” e outros absurdos mais... Era como se “respondessem” uma missa
induzidos por respostas prontas e decoradas.
Não sei por que as
pessoas, seja aqui ou em outros locais que a televisão mostra, adoram
ver os “criminosos” presos, algemados e sendo jogados em um camburão. Em
contrapartida, as penas alternativas são sempre motivo de deboche e
gozação: “ta vendo aí, não deu em nada! Algumas cestas básicas e o cara
não foi preso nem um dia”! É assim, ou não é? A grande mídia se
transforma em padre e as pessoas começam a repetir...
Voltando ao
assunto “Dele” no meio de nós, depois de me conter, no referido evento,
durante um bom tempo, perdi a paciência, o que ocorre muito raramente, e
discursei furiosamente:
Vocês se referem a bandidos, marginais,
delinquentes e outros adjetivos mais e se esquecem que os bandidos são
pessoas humanas e filhos do mesmo Deus de todos nós!
Vocês esquecem que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança!
Vocês esquecem que todos os homens e mulheres são iguais perante a Lei!
Vocês esquecem que nossa República é fundada na cidadania e na dignidade da pessoa humana!
Vocês se transformaram em máquinas que apenas repetem o que a televisão manda!
Vocês pensam que esses tais bandidos nascem das bolhas que pipocam nos
esgotos fedidos que cortam as ruas da periferia das cidades?
Vocês pensam que bandidos nascem da fumaça ou da quentura do lixo jogado a céu aberto nas margens das rodovias?
Vocês pensam que bandidos nascem nas varas das tabocas que abundam o
lamaçal que se transformou o que um dia foi chamado de riacho?
Vocês
pensam que bandidos nascem do fedor que exala das lagoas transformadas
em fossa para receber o esgotamento sanitário das cidades?
Vocês pensam que bandidos nascem das cinzas ou do carvão que estão fazendo com as poucas árvores que sobraram da caatinga?
Vocês pensam que bandidos caem do céu com as tempestades de granizo?
Vocês pensam que bandidos chegaram do espaço em uma nave espacial?
Vocês pensam que bandidos saem da terra vindo das profundezas do inferno?
Vocês pensam que bandidos são filhos do demônio?
Não! Não e Não! Chega de mentira! Chega de repetição!
Ora, vocês querem saber de onde nascem os bandidos? Querem?
Os bandidos nascem da falta de carinho dos pais com seus filhos quando ainda são crianças!
Os bandidos nascem da falta de escolas bem equipadas e professores estimulados!
Os bandidos nascem da falta de postos de saúde para cuidar dos filhos de vocês!
Os bandidos nascem da falta de políticas públicas de incentivo à cultura, ao lazer e aos esportes para os filhos de vocês!
Os bandidos nascem da falta de quadras poliesportivas, de centros culturais, de bibliotecas, de cinema e de teatro!
Os bandidos nascem da falta de uma profissão e do desemprego dos filhos de vocês!
Os bandidos nascem da roubalheira do dinheiro público!
Os bandidos germinam nos cofres abarrotados de verba pública desviada!
Os bandidos nascem da violência da polícia contra os filhos de vocês!
Os bandidos nascem do preconceito que a elite alimenta contra os pobres e negros da periferia!
E o pior de tudo: os bandidos nascem da falta de sonhos e da falta de perspectivas para os jovens!
E para terminar, se vocês querem saber mesmo, os bandidos nascem no
meio nós e estão no meio de nós! Eles estão no meio de nós!
Entenderam?Eles nascem e estão no meio de nós! Nascem e morrem por culpa
nossa, nossa culpa! Nascem da nossa falta de pensar! Nós somos seus
pais e mães e algozes ao mesmo tempo! Nós os criamos e os matamos!
Então, pergunto a vocês: quem é o bandido pior: o bandido que nasce do
descaso do poder público ou bandido travestido de homem público que
rouba o dinheiro que seria destinado à construção de escolas, creches,
praças e hospitais? Quem é o bandido pior: o que rouba para comprar
crack ou quem permite que os jovens deste país, por falta de
oportunidades, sejam seduzidos pelas drogas? Quem é o bandido pior: o
que não sonha ou quem lhe roubou o sonho? Bandido pior, se vocês querem
saber, é quem transforma os jovens desta cidade e deste país em
bandidos!
Ora, ora, vocês pensam que vão acabar com a violência
matando os bandidos, mas vocês só enxergam os bandidos que nascem do
meio de vocês mesmos! Filhos de vocês, primo, sobrinho, filho do amigo
de vocês, o amigo de infância... Passam a vida repetindo! Não querem ver
os bandidos de verdade! Os ladrões dos sonhos!
Não, gente, não é
assim que teremos paz! Não é defendendo a pena de morte ou prisão
perpétua e nem fazendo passeata vestido de branco e pedindo paz, mas
evitando, sobretudo, que todos os jovens sem sonhos desta cidade e deste
país sejam transformados nos bandidos de amanhã! Vamos pensar, vamos
refletir, vamos compreender! Vamos todos sonhar juntos por um mundo
melhor e vamos fazer desse sonho uma realidade!
Chega! Chega de tanta mentira e hipocrisia!
Um silêncio profundo... alguns tinham os olhos arregalados, outros me
olhavam incrédulos e outros como que hipnotizados... Eu também não
gostei de me expressar assim, mas é que estou ficando cansado e sem
muita paciência!
* Juiz de Direito (Ba.) membro da Associação
Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-voz no Brasil do movimento
Agentes da Lei Contra a Proibição. (Leap-Brasil)
Francisco Anisio