Ricardo Westin |
06/02/2017, 09h58
Pedro II, que discutiu com o Conselho de Estado formas de salvar o Montepio Geral e proteger aposentados, viúvas e órfãos
Ibram
Sem dinheiro em caixa, o sistema de aposentadorias e
pensões está perto de quebrar. Idosos, viúvas e órfãos correm o risco de
ficar na mão. O chefe do governo convoca um seleto grupo de políticos
para discutir um plano contra a falência. A proposta sobre a mesa é
impopular: eleva-se o valor das contribuições desembolsadas pelos
trabalhadores e, ao mesmo tempo, corta-se à metade o valor dos
benefícios pagos aos aposentados e pensionistas.
Apesar de esse ser um tema atual, a discussão não envolve o
presidente Michel Temer, que em dezembro apresentou ao Congresso uma
proposta que endurece as regras da Previdência Social, para tirar as
contas do vermelho. A crise previdenciária no Brasil é muito mais
antiga. O debate em questão se dá no Império, em 1883, numa reunião
entre dom Pedro II e os integrantes do Conselho de Estado.
De
acordo com a ata da reunião, o senador visconde de Muritiba (BA) diz
que “é de toda evidência” que o encolhimento de aposentadorias e pensões
“não tira direitos adquiridos”. O conde d’Eu, marido da princesa
Isabel, segue a linha “dos males, o menor”:
— Uma liquidação imediata traria para muitas pessoas prejuízos mais consideráveis do que a projetada redução de pensões.
O senador Dantas (BA), por sua vez, reclama que, apesar de a falência
se prenunciar há anos, ninguém jamais foi corajoso o suficiente para
arcar com o ônus de reformar o sistema.
O Brasil imperial, na realidade, nunca chegou a ter um sistema
público de aposentadorias e pensões. O que os conselheiros discutiram
com dom Pedro II foi a agonia financeira do Montepio Geral, uma
instituição privada semelhante às atuais entidades de previdência
complementar (ou fundos de pensão).
Cocheiros e alfaiates
O Império estava repleto de montepios. Havia o dos sapateiros, o dos
alfaiates, o dos ourives, o dos cocheiros, o dos maquinistas, o dos
tipógrafos de jornal e o dos músicos, entre muitos outros. Em geral,
tinham alcance local, restritos às maiores cidades. À diferença dos
fundos de pensão contemporâneos, os montepios não tinham fins
lucrativos.
O Montepio Geral tornou-se assunto de Estado por causa do tamanho e
da qualidade da carteira de clientes. Diferente das demais entidades de
socorro mútuo, o combalido montepio tinha sob seu guarda-chuva
contribuintes de todas as províncias e das mais diversas profissões,
tanto do serviço público quanto da iniciativa privada.
— A liquidação do Montepio Geral seria uma verdadeira calamidade —
adverte o ex-ministro e ex-deputado Martim Francisco na reunião do
Conselho de Estado.
Para fazer parte de um montepio, o interessado primeiro pagava uma
taxa de adesão (conhecida como joia) e passava a arcar com as anuidades.
Ao assinar o contrato, ele escolhia se o dinheiro despendido ao longo
da vida se reverteria em aposentadoria ou em pensão.
Para a aposentadoria, o segurado fixava o momento em que pararia de
trabalhar e começaria a receber o benefício, cujo valor variava conforme
a idade e o tempo de contribuição. Para a pensão, estabelecia quais
pessoas fariam jus ao pagamento mensal assim que ele morresse e quais
seriam as porcentagens — 60% para a viúva (até o fim da vida) e 40% para
os filhos (até determinada idade), por exemplo.
Para fazer o dinheiro das joias e das anuidades render, os montepios
compravam apólices da dívida pública, adquiriam imóveis de aluguel e
concediam empréstimos a juros.
Velhice na miséria
A
popularidade dos montepios se explica pela inexistência de um sistema
previdenciário no Brasil até as primeiras décadas do século 20. Não
dispondo de aposentadoria, a penúria era o destino de muitos dos
brasileiros que chegavam a uma idade avançada sem forças para trabalhar.
A literatura nacional é farta de personagens assim. No romance
Clara dos Anjos,
Lima Barreto apresenta o velho dentista Meneses, que bebia para
“afugentar o terror que a vida lhe inspirava, na miséria, quase
indigência em que se achava, naquela idade avançada de mais de 70 anos,
alquebrado, doente” e “sem uma pensão qualquer”.
No Brasil pré-Previdência Social, havia escassas maneiras de se
evitar esse fim. Uma era amealhar patrimônio ao longo da vida, como
escravos e casas de aluguel. Outra era criar filhos bem-sucedidos,
capazes de amparar o chefe da casa na velhice. E outra era aderir a um
montepio.
Não se pode, no entanto, acusar o Império de omissão. Nenhum lugar do
mundo tinha Previdência Social naquele momento. O primeiro país a
oferecer aposentadorias e
pensões ao povo foi a Prússia (parte da atual Alemanha), em 1889, por iniciativa do chanceler Bismarck.
A palavra “montepio” deriva do italiano monte di pietà, que em
tradução livre significa “crédito de piedade”. Os montepios surgiram no
século 15, pelas mãos dos frades franciscanos da Itália, originalmente
para conceder empréstimos baratos aos pobres, que deixavam algum bem
penhorado como garantia.
O Império tinha uma casta de privilegiados que conseguiram ter a
aposentadoria (mas não a pensão) assegurada em lei: os servidores
públicos das categorias mais poderosas. É o caso dos professores da
Academia Militar e de Marinha da Corte. Eles se aposentavam com o
“ordenado por inteiro” após 20 anos de trabalho. Antes desse tempo, a
aposentadoria equivaleria à metade do salário da ativa.
Baixo clero
As leis eram específicas para cada classe de servidor. No caso dos
funcionários do Tesouro Nacional, o mínimo para ganhar vencimentos
integrais eram 25 anos de serviços prestados. Com menos tempo de
trabalho, a aposentadoria era proporcional.
Os mesmos 25 anos valiam para os empregados das alfândegas, com a
ressalva de que perdiam sumariamente o direito à remuneração na velhice
os que tivessem “erro de ofício” anotado no histórico profissional.
Os empregados dos Correios passaram a ter a aposentadoria garantida
em lei apenas em 1888, às vésperas da Proclamação da República, mas com
exigências duras. Além do mínimo de 30 anos de trabalho, precisavam ter
60 anos de idade. No final do Império, poucos viviam tanto. O IBGE
estima que a expectativa de vida dos brasileiros era de 33 anos — hoje é
de 75.
O baixo clero do funcionalismo não tinha aposentadoria regulada por
lei. As categorias menos influentes dependiam da “mercê” (ou “graça”)
concedida pelo monarca e pelos parlamentares em retribuição pelos “bons
serviços” prestados ao país. Para conseguir uma velhice tranquila, o
servidor precisava ter bons contatos nos palácios imperiais e na
Assembleia Geral (atual Congresso Nacional).
Foi o caso do padre Miguel Lopes Gama, que ensinava retórica na
Academia Jurídica de Olinda (PE). De acordo com documentos sob a guarda
do Arquivo do Senado, em Brasília, o padre professor teve sucesso no
pedido feito à Assembleia. Em 1840, os senadores e os deputados
autorizaram a aposentadoria “com o mesmo ordenado de 600 mil-réis anuais
que percebia durante o magistério”. O decreto personalizado foi logo em
seguida sancionado por dom Pedro II.
O professor de história Luiz Fernando Saraiva, da Universidade
Federal Fluminense (UFF), estudou as 4,5 mil leis aprovadas pela
Assembleia Geral nas sete décadas do Império e constatou que nada menos
do que 1,5 mil tinham cunho estritamente pessoal — empossando alguém
numa repartição do governo, elevando o salário de um funcionário
público, concedendo aposentadoria a outro ou prevendo pensão para uma
viúva.
— As aposentadorias e pensões eram concedidas de forma caótica,
negociadas uma a uma, sem critérios claros. Isso abria espaço para
arbitrariedades e favorecimentos — afirma Saraiva.
Debate no Senado
Sem
a sorte do padre professor, o contador Joaquim Ignácio Lopes de Andrade
viu seu ordenado ser reduzido à metade ao se aposentar do serviço
público, em 1830. Uma década mais tarde, ele recorreu à Assembleia Geral
pedindo que a aposentadoria fosse reajustada à integralidade.
O Arquivo do Senado guarda as falas da sessão em que os senadores
discutiram o caso, em 1841. O senador José de Alencar (CE), pai do
escritor de mesmo nome, discursa a favor do contador:
— Como pode um pobre empregado público viver com 600 mil-réis anuais?
Pelo menos metade dessa soma é absorvida pelo aluguel de casa. E quanto
lhe fica para alimentar-se a sua família? É no último quartel de vida,
quando precisa ter pão para alimentar-se, é que se lhe diminuem os
recursos!
O senador Vergueiro (MG) vota contra o pedido. Segundo ele, reajustes
indiscriminados prejudicam o planejamento financeiro do Império:
— Se vamos aumentar as aposentadorias por tal modo, parece-me que não
teremos dinheiro para isso. O que se observa é que a renda do Tesouro
já não chega para tantas despesas a que ele tem de satisfazer.
Exaltado, o senador Alves Branco (BA), que já foi ministro da Fazenda, reage:
— Agora apareceu o argumento de economia! E economia para tirar o
pão! A um homem que fez 38 anos de bons serviços dão-se somente 600
mil-réis. Eu não concebo tal economia.
Após o bate-boca, os senadores vitalícios se deixam convencer pelos
argumentos favoráveis ao velho contador, o imperador assina o decreto e o
aposentado passa a fazer jus a 1 conto e 200 mil-réis anuais até o fim
da vida.
Em todos os casos, os funcionários públicos não tinham que pagar
nenhum tipo de contribuição. As aposentadorias e pensões eram
integralmente bancadas pelos cofres imperiais.
—
Isso é algo impensável hoje em dia — diz o jornalista JB Serra e
Gurgel, autor do livro Evolução da Previdência Social. — O requisito
número um do sistema previdenciário universal é a contribuição. Sem
contribuição, não pode haver benefício.
Em 1835, o governo apoiou a criação de um montepio de adesão
voluntária específico para amparar os familiares dos funcionários
públicos que falecessem: o Montepio Geral de Economia dos Servidores do
Estado — que não deve ser confundido com o Montepio Geral que motivou a
reunião de dom Pedro II com o Conselho de Estado em 1883.