MARUIM
e RIBEIRÓPOLIS (SE) - Era quase hora do almoço quando três crianças
entraram no casebre de pau a pique, pulando a vala de esgoto na rua de
terra. Vinham da escola, e as primeiras palavras dirigidas à avó na
porta da cozinha foram queixas de fome. Era o segundo dia consecutivo em
que os netos voltavam para casa reclamando de que não haviam recebido
merenda no intervalo da aula. A dois quilômetros do vilarejo no interior
de Sergipe, o prefeito de Maruim, Jeferson Santana (PMDB), entrava no
seu Toyota Corolla rumo ao Tribunal de Contas do Estado. O órgão ameaça
bloquear as contas da prefeitura por atrasos no pagamento de servidores.
Apesar de toda essa situação, o salário do prefeito, reeleito, foi
fixado em R$ 30 mil para o próximo mandato (2017 a 2020). É mais do que
ganha o presidente Michel Temer (R$ 27 mil). E o município sergipano de
apenas 17 mil habitantes não está sozinho nessa farra.
O
GLOBO identificou cidades em pelo menos quatro estados (Sergipe, Ceará,
Rio Grande do Norte e Mato Grosso do Sul), onde Câmaras Municipais estão
dando reajustes a prefeitos de até 66%, fazendo com que os vencimentos
superem os R$ 30 mil. A inflação acumulada nos últimos quatro anos foi
de 31%.
À ESPERA DE CASAS POPULARES
São municípios pequenos e médios, onde o supersalário contrasta com a realidade miserável de parte da população.
—
Se eu tivesse R$ 30 mil, ia ajudar minha família e outras pessoas
carentes, porque eu já ajudo sem ter nada — sonha Maria de Fátima da
Conceição Santos, a avó que ouviu o lamento dos netos por comida.
O
GLOBO estava no casebre da família quando as crianças chegaram. Maria
de Fátima contava que nem banheiro havia na casa. Para comer, somente
ovos. Ela vive na Rua do Osso, no povoado São Vicente, há 21 anos à
espera de casas populares num terreno ao lado, cuja obra está parada
desde 2015.
A cidade vizinha, Santo Amaro das Brotas —
ainda menor (12 mil habitantes) —, seguiu o mesmo caminho de Maruim. Lá,
foi aprovado um salário de R$ 33 mil para o próximo governante.
No
agreste sergipano, em Ribeirópolis, no mesmo mês (setembro) em que a
prefeitura decretou situação de emergência por causa da seca, o
Legislativo aprovou o novo salário para o prefeito que assumirá em 2017:
R$ 30.386. A cidade tem 18 mil habitantes e quase um terço (31%) vive
em situação de pobreza. Há famílias cuja renda é menor que um
salário-mínimo, como as que vivem do lixão da cidade. A 15 minutos de
carro da prefeitura, moradores do povoado Lagoa das Esperas não têm o
básico, como água encanada. Para abastecer a casa, é preciso ir até uma
caixa d’água comunitária.
— Todo dia meu marido, antes
de trabalhar, leva os galões. Quem mora mais longe vem de carroça —
conta Milena Roberta Goes, que vive em frente ao reservatório e, mesmo
assim, perdeu toda a roça de milho no quintal.
O GLOBO passou a última quarta-feira na cidade, onde tentou falar com o prefeito João de Nega (PSB), mas ele não foi encontrado.
A
Constituição obriga que, a cada fim de mandato, a Câmara Municipal
defina o subsídio de prefeito, vice, secretários e vereadores para os
quatro anos seguintes. No entanto, não há um critério para o cálculo
desses valores. A única regra é não ultrapassar o teto do funcionalismo,
que é o salário do ministro do Supremo Tribunal Federal (R$ 33.736).
Em
Juazeiro do Norte (CE), o salário do novo prefeito, o deputado Arnon
Bezerra (PTB), será de R$ 33 mil. O subsídio foi votado mesmo com a
Câmara Municipal tomada por manifestantes em outubro. O prefeito em
exercício é irmão de Bezerra e sancionou este mês a remuneração generosa
a ser paga ao irmão.
Nem mesmo os orçamentos no vermelho
e as despesas com pessoal acima do limite permitido por lei têm inibido
a fixação de altos salários. Em Mossoró (RN), a discussão do subsídio
de R$ 30.339 para o futuro prefeito, a ex-governadora Rosalba Ciarlini
(PP), ocorreu em regime de urgência. O último balanço da cidade ao
Tesouro Nacional mostrou que a prefeitura está gastando 57% da sua
receita com folha de pagamento. O máximo permitido é 54%. O município
tem parcelado os salários dos servidores este fim de ano. Na campanha
eleitoral, Rosalba prometeu que, se eleita, abriria mão do reajuste.
—
O reajuste foi necessário para que os auditores fiscais, que têm o
salário atrelado ao do prefeito, tivessem aumento — justificou a
vereadora Izabel Montenegro (PMDB).
PARA PROMOTOR, REAJUSTES SÃO IMORAIS
Em
regiões mais ricas, O GLOBO também encontrou a mesma prática. Em
Chapadão do Sul, conhecida como a capital do agronegócio no Mato Grosso
do Sul, o salário do chefe do Executivo passará de R$ 20 mil para R$ 32
mil. O atual prefeito, Luiz Felipe Barreto de Magalhães, disse que a
cidade é uma “ilha de excelência” e pode arcar com essa remuneração.
— É importante valorizar o prefeito para que não tenha necessidade de ficar com manha nem entrar em enrosco — afirmou.
O
promotor de Justiça de Ribeirópolis, Diego Gouveia Pessoa de Lima,
classificou esses reajustes de imorais, mas explicou que eles são
juridicamente legais:
— O que o Ministério Público pode
fazer é tentar contestá-lo, questionando, por exemplo, por que foi acima
da inflação? Analisar as contas do município e ver se está tudo em dia,
se ele está cumprindo o limite de gasto com pessoal. Se não, podemos
pedir a anulação — disse.
O presidente da Confederação
Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski, se surpreendeu com os salários
encontrados pelo GLOBO. Ele disse acreditar que são casos pontuais.
—
É um péssimo exemplo, no momento em que estão todas as prefeituras
quebradas. Mesmo que o município esteja com as contas em ordem, o
dinheiro não é para isso — reagiu.
Para o dirigente, essa questão salarial é mais uma prova de que é urgente reorganizar a Federação brasileira.
O GLOBO procurou as prefeituras de Santo Amaro das Brotas, Juazeiro do Norte e Mossoró, mas os prefeitos não se manifestaram.