Ex-aluno de física e de filosofia da USP, Jorge Cândido de Assis carrega
no corpo das marcas da esquizofrenia. Aos 21, durante uma crise, ele se
jogou contra um trem do metrô e perdeu uma perna.
Hoje, aos 49 anos, cinco crises psicóticas, ele dá aulas sobre estigma
em um curso de psiquiatria e acaba de lançar um livro no qual descreve a
experiência de enlouquecer. "Entre a Razão e a Ilusão" (Artmed Editora)
foi escrito em parceria com o psiquiatra Rodrigo Bressan e com a
terapeuta Cecilia Cruz Villares, da Unifesp.
Leia o depoimento dele.
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"Tive uma infância tranquila, jogando bola na rua. Aos 14 anos, entrei
na escola técnica e já sabia trabalhar com eletricidade. Adorava física.
Em 1982, prestei vestibular para física na USP e não passei. Em 1983, fiz cursinho, prestei de novo e não passei.
Consegui uma bolsa no cursinho, passei perto e não entrei de novo. Foi
um ano depressivo para mim. Eram os primeiros sinais da esquizofrenia,
mas eu não sabia.
Eu me isolei, tinha delírios. O desfecho foi trágico. Numa manhã de
domingo, entrei na estação do metrô Liberdade. Escutei uma voz: "Por que
você não se mata?". Me joguei na frente do trem.
Acordei três dias depois no hospital sem a minha perna direita. Tinha 21 anos.
Foi bem sofrido, mas coloquei toda minha energia e determinação na reabilitação. Quatro meses depois, já estava com a prótese.
Sozinho, voltei a estudar para o vestibular e passei em física e
fisioterapia na Universidade Federal de São Carlos. Meu sonho era
desenvolver uma prótese melhor e mais barata do que as versões que
existiam naquela época.
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Danilo Verpa/Folhapress |
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Jorge Cândido de Assis, 49, no departamento de psiquiatria da Unifesp, em São Paulo |
Um dia, em 1987, cheguei em casa e ela havia sido arrombada. Tive que ir
até a delegacia dar queixa e reconhecer os objetos furtados.
Isso desencadeou a segunda crise psicótica. Tinha delírios de grandeza, alucinação, mania de perseguição.
Fui internado em Itapira durante um mês. Saí de lá com diagnóstico de
esquizofrenia, medicado mas sem encaminhamento. Um dos remédios causava
enrijecimento da musculatura e eu não conseguia escrever. Então parei de
tomar a medicação e comecei a fazer tratamento em centro espírita.
Voltei a estudar em São Carlos. Depois da crise, perdi muitos amigos por
puro estigma. Comecei a trabalhar, paralelamente aos estudos, mas ficou
pesado demais. Preferi desistir do curso.
Em 1993, prestei vestibular na USP e passei. Foi mágico, a realização de
um sonho. Continuei trabalhando, mas cheguei num ponto de saturação e
desisti do curso.
Minha vida foi perdendo o sentido, vivia por viver. Me sentia vazio de emoções.
Nesse período, fazia parte de um grupo de pesquisa na USP. Mas, por uma
série de divergências, o grupo se desfez. Ao mesmo tempo, meu namoro
acabou. Esses dois fatores desencadearam minha terceira crise.
Foi uma crise também com delírios, alucinações, isolamento. Fiquei um
mês internado. Foi aí que comecei a me tratar de esquizofrenia de fato.
Além das medicações, fazia psicoterapia, terapia ocupacional e prestei
vestibular para filosofia na USP. Passei. Sentia-me tão bem que disse:
"Superei a esquizofrenia. Vou parar com os remédios".
Minha mãe morreu em 2002 e, em seguida, tive a minha quarta crise, que
também foi controlada com remédios. É como começar do zero.
Entre 2003 e 2007, participei de um grupo de pacientes com esquizofrenia
em que discutíamos a doença, as vivências, as formas de comunicação. Em
2005, o [psiquiatra] Rodrigo Bressan me convidou para participar das
aulas dele contando a minha experiência pessoal, sobre o estigma. Em
2007, surgiu o projeto do livro sobre direitos de pacientes com
esquizofrenia.
Foi um processo de criação intenso durante 18 meses. Em 2008, o Rodrigo
me convidou para deixar de ser paciente e entrar para a equipe dele. Foi
uma grande oportunidade.
No início do ano passado, fui palestrar em Londres sobre o nosso trabalho. Quando estava voltando, fizemos uma escala em Madri.
Sentia muita dor na perna e pedi uma cadeira de rodas. Esperei e nada.
Tirei a perna mecânica, coloquei na bolsa e fui pulando até a sala de
embarque. Todo esse estresse me levou à quinta crise. Ela foi
rapidamente controlada, mas é um processo difícil retomar a rotina
anterior, ressignificar as coisas para que a vida faça sentido.
Depois das crises, tenho que renascer das cinzas. Muitas pessoas
desistem. Precisa de uma grande dose de esforço para reconstruir a vida.
A medicação ajuda, mas não é garantia. Consigo lidar com as demandas da vida, mas nunca sei se o que sinto é ou não da doença.
Não ouço mais vozes, mas tenho autorreferência. Penso que tudo ao meu
redor tem a ver comigo. Se ouço um barulhinho lá fora, acho que pode ter
câmera escondida.
Se as pessoas estão conversando no corredor, acho que estão falando sobre mim.
O delírio é inquestionável, você acredita nele. Mas tenho clareza do que é autorreferência, deixo para lá.
Tenho que saber os meus limites. O referencial para a gente é o mundo exterior, a relação das pessoas.
Muitas vezes, o início das crises não é percebido. Por isso é importante dividir com o médico, com a família.
O estigma também é muito prejudicial. Ser apontado como o louco ou ser
desacreditado só piora. A esquizofrenia é uma doença crônica, que afeta
as emoções, os relacionamentos, as vontades.
Tenho sorte de ter uma família unida, que me apoia. Isso dá sentido à minha vida.
Olho para trás e confesso que me sinto frustrado por ter começado duas
vezes física, em duas das melhores universidades, e não ter concluído.
Mas fico feliz com o trabalho de poder ajudar outras pessoas com a minha
história. As pessoas sofrem no Brasil pela falta de locais para a troca
de informações.
Minha meta agora é construir uma rede de associações de apoio a pacientes com esquizofrenia.
Eu não sou só a doença, e a doença não me define.
Tenho que lidar com a esquizofrenia, mas ela não é a parte mais fundamental da minha vida."