Um dos principais mecanismos utilizados pela Operação Lava Jato,
a delação premiada tem origens nos tempos da Idade Média. Os registros
vêm desde a época da Inquisição, quando a Igreja Católica perseguiu
praticantes de outras religiões, que eram considerados hereges.
Além das denúncias, que podiam ter como base rumores ou acusações
públicas, o sistema inquisitório dava extrema importância para a
confissão do acusado, que podia ser alcançada por meio de uma promessa
de recompensa ou até mesmo pelo uso da tortura. Quem delatava sob
tortura, inclusive, era bem visto pela sociedade.
"Na
Inquisição, a ideia era de que o autor do crime era inimigo do
inquisidor, portanto ele podia usar todos os poderes para obter uma
confissão, inclusive utilizando tortura", explica Gustavo Badaró,
professor de Processo Penal da Faculdade de Direito da USP (Universidade
de São Paulo).
Para Badaró, o conceito moderno da delação
premiada --que é o utilizado na Lava Jato-- tem "uma clara inspiração
inquisitória ao utilizar o autor do crime para provar a ocorrência do
delito cometido por ele e seus comparsas". "Na verdade, a delação da
Lava Jato é algo vintage", brinca Badaró.
"Havia [na
Inquisição] uma pressão psicológica. A pessoa sabia que, se não contasse
algo que interessasse ao inquisidor, ela corria riscos –como queimar na
fogueira, inclusive", destaca o professor.
E hoje, a delação é
feita nesse mesmo contexto? Para Badaró, existe uma "tortura moderna,
uma tortura psicológica" por trás da relação existente entre prisões
cautelares e a confissão por meio da delação.
"Esse é um
problema sério –caso de pessoas que estavam presas, fizeram inúmeros
pedidos de liberdade provisória e assim que acenam a possibilidade de
firmar um acordo de delação premiada são postas em liberdade", defende o
professor. É esse o caso, por exemplo, do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, que deixou a cadeia em 2016, após passar um ano e meio em cárcere.
As delações na História
No Brasil, segundo Badaró, o primeiro registro oficial do conceito que
conhecemos hoje como delação premiada é de 1603, nas Ordenações
Filipinas, conjunto de leis espanholas que vigorou em terras brasileiras
durante o período da União Ibérica.
Estava previsto nessas leis
o crime de lesa-majestade, descrito como "traição cometida contra a
pessoa do Rei, ou seu Real Estado". Existia também o perdão ao delator,
como descreve o texto: "por isso [delação] lhe deve ser feita mercê
[favor, benefício], segundo o caso merecer, se ele não foi o principal
tratador desse conselho e confederação" –ou seja, caso o delator não
fosse o líder do movimento conspiratório.
Badaró explica que foi
dessa lei que se valeu o coronel Joaquim Silvério dos Reis, que estava
endividado com a Coroa e decidiu delatar os inconfidentes mineiros para
ter sua dívida perdoada.
"Além de não ser punido com a pena de
morte, dois anos depois foi a Lisboa e recebeu o foro de fidalgo da Casa
Real, além de uma pensão anual de quatrocentos mil réis", conta o
professor.
Outros registros importantes aparecem já nos anos 90,
com as leis dos Crimes Hediondos, dos Crimes Contra Ordens Tributárias e
a Lei de Lavagem de Dinheiro.
"[Essas leis] que tratavam da
delação premiada se limitavam ao benefício, à redução da pena, que ao
final do processo o juiz podia aplicar a quem delatou", ressalta Badaró,
destacando que não havia um consenso sobre qual procedimento deveria
ser seguido pelas duas partes –o delator e o Ministério Público.
Isso mudou apenas em 2013, com a Lei 12.850, que definiu as
organizações criminosas e mudou a regulamentação dos acordos de delação.
"Houve maior amplitude desse procedimento e maior liberdade de
negociação. Se antes só se falava em redução de pena, agora se fala da
possibilidade de aplicação de regimes diversos. Além disso, agora existe
o pré-acordo e a necessidade da homologação", afirma Alamiro Velludo,
professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
Essas
mudanças, segundo ambos os professores, dão mais segurança para que
tanto o delator quanto o Ministério Público possam fazer uso da delação
premiada.