domingo, 30 de outubro de 2016

A religião do medo

 

 

Convencer fiéis a abdicar de recursos para sustentar supostos arautos do divino é explorar os efeitos sem alertar para as causas

Frei Betto, colunista Foto:  
Frei Betto, colunista -  
Muitos cristãos foram educados na religião do medo. Medo do inferno, das chamas eternas, das artimanhas do demônio. E quando o medo se apodera de nós, adverte Freud, transforma-se em fobia. Recurso sempre utilizado por instituições autocráticas que procuram impor seus dogmas a ferro e fogo, de modo a induzir as pessoas a trocar a liberdade pela segurança.
Quando se abre mão da liberdade, demite-se da consciência crítica, omite-se perante os desmandos do poder, acovarda-se agasalhado pelo nicho de uma suposta proteção superior. Foi assim na Igreja da Inquisição, na ditadura estalinista, no regime nazista. É assim a xenofobia ianque, o terrorismo islâmico e os segmentos religiosos que dão mais valor ao diabo que a Deus, e prometem livrar os fiéis de males através da vulgarização de exorcismos, curas milagrosas e outras panaceias para enganar os incautos.
Em nome de uma ação missionária, milhões de indígenas foram exterminados na colonização da América Latina. Em nome da pureza ariana, o nazismo erigiu campos de extermínio. Em nome do socialismo, Stalin ceifou a vida de 20 milhões de camponeses. Em nome da defesa da democracia, o governo dos EUA semeia guerras e, no passado recente, implantou na América Latina sangrentas ditaduras.
Convencer fiéis a abdicarem de recursos científicos, como a medicina, e de boa parte da renda familiar para sustentar supostos arautos do divino é explorar os efeitos sem alertar para as causas. Já que, no Brasil, milagre é o povão ter acesso ao serviço de saúde de qualidade, haja engodo religioso travestido de milagre!
A religião do medo alardeia que só ela é a verdadeira. As demais são heréticas, ímpias, idólatras ou demoníacas. Assim, reforçam o fundamentalismo, desde o bélico, que considera inimigo todo aquele que não reza pelo seu livro sagrado, até o sutil, como o que discrimina os adeptos de outras tradições religiosas e sataniza os homossexuais e os ateus.
A modernidade conquistou o Estado laico e separou o poder político do poder religioso. Porém, há poderes políticos travestidos de poder religioso, como a convicção ianque do “destino manifesto”, como há poderes religiosos que se articulam para ocupar os espaços políticos.
Até o mercado se deixa impregnar de fetiche religioso ao tentar nos convencer de que devemos ter fé em sua “mão invisível” e prestar culto ao dinheiro. Como afirmou o papa Francisco em Assis, a 5 de junho de 2013, “se há crianças que não têm o que comer (...) e uns sem abrigo morrem de frio na rua, não é notícia. Ao contrário, a diminuição de dez pontos na Bolsa de Valores constitui uma tragédia”.
Uma religião que não pratica a tolerância nem respeita a diversidade religiosa, e se nega a amar quem não reza pelo seu Credo, serve para ser lançada ao fogo. Uma religião que não defende os direitos dos pobres e excluídos é, como disse Jesus, mero “sepulcro caiado”. E quando ela enche de belas palavras os ouvidos dos fiéis, enquanto limpa seus bolsos em flagrante estelionato, não passa de um “covil de ladrões”.
O critério para se avaliar uma verdadeira religião não é o que ela diz de si mesma. É aquela cujos fiéis se empenham para que “todos tenham vida, e vida em abundância” (João 10, 10) e abraçam a justiça como fonte de paz.
Deus não quer ser servido e amado em livros sagrados, templos, dogmas e preceitos. E sim naquele que foi “criado à Sua imagem e semelhança”: o ser humano, em especial aqueles que padecem de fome, sede, doença, abandono e opressão (Mateus 25, 36-41).